
Os veterinários são muito poupados nos sistemas de administração de soro. Aliás, preferem que o animal fique sem receber soro do que trocar um dos ditos sistemas (que custa cerca de 0,40€; um absurdo! uma roubalheira!).
Num estágio, em que tive o privilégio de tomar conta dos animais internados, deparei-me com a tarefa aparentemente impossível, de calar a bomba infusora do soro. Estas maquinetas infernais são extremamente sensíveis, pelo que qualquer bolhinha de ar com 0,0001 milímetros de diâmetro dispara o alarme (que, diga-se de passagem, é bastante irritante, especialmente porque está sempre aos berros, devido à dada sensibilidade do aparelho demoníaco).
Eram 19h00, e se eu e a minha colega e amiga Maria (nome fictício) nos despachássemos, podiamos sair às 20h00 e comer um merecido sunday de caramelo do McDonald's (antes do jantar). Rapidamente começámos a preparar as medicações dos nossos pacientes. Claro que para nos atrapalhar, um alarme disparou. A máquina do demo queixava-se de uma bolha invisível, que eu, ao tentar encontrar, transformei numa bolha gigante. Deixou mesmo de ser bolha e passou a ocupar cerca de 4 centímetros do tubo de soro. Não me conseguia desfazer daquele ar todo e perguntei à Maria o ela achava de espetar uma agulha no tubo e tentar tirar o ar.
- Não sei, não sei!... - ela estava muito concentrada a colocar um comprimido num lança-comprimidos e a preparar-se psicologicamente para administrá-lo a um cão alegadamente agressivo. Na verdade o seu receio era infundado, pois o cão estava moribundo, aliás como a maioria dos animais internados. Naquela clínica todos os animais tinham um de dois destinos, quer se encontrassem moribundos ou relativamente bem: ou se curavam miraculosamente ou morriam. Não havia doenças diagnosticadas, só administrações medicamentosas iguais para todos e milagres. Ou mortes.
Decidi arriscar. E concluí rapidamente que tinha sido má ideia. Não só a bolha permaneceu no tubo, como agora este tinha um furo (quem diria?!?) por onde saiam alegremente umas modestas gotinhas de soro. Coloquei prontamente um adesivo à volta mas o soro ofendeu-se e começou a sair furiosamente pelo buraquinho!
- Maria, Maria! Isto está a deitar soro por tudo quanto é lado!
- Claro que está! Se o furaste, do que é que estavas à espera?
Nem respondi...
- Tens de me ajudar a mudar isto rapidamente antes que a veterinária desça da consulta!
Batemos o record de mudança de sistemas de soro. Não cronometrei, mas de certeza que foi em menos de 20 segundos! Pus o sistema de soro arruinado no bolso da minha bata, para mais tarde eliminar a prova do crime (pensava deitá-lo no contentor do lixo em frente à clínica mas esqueci-me e acabei por levá-lo para casa).
Entretanto, enquanto eliminava mais algumas provas incriminatórias, a Maria ia administrando os medicamentos.
- Ai! Ai, que isto não está a acontecer!... - ela estava um bocado branca. - Enganei-me e administrei a medicação do gato a este cão!
O gato tinha uma bateria de remédios maior que a dos velhinhos hipocondríacos. Repito que naquela clínica não se faziam diagnósticos, por isso o protocolo consistia em tratar todos os sinais que o animal apresentasse, e no caso deste gato eram muitos...
A Maria foi rapidamente ler as bulas de todos os medicamentos indevidamente administrados ao cão enquanto eu me tinha sentado no chão (provavelmente em cima de uma poça de xixi) a rir-me até me doer a barriga e me faltar a respiração. Era asneira demais para 20 minutos e com cansaço à mistura, só posso concluir que tive um mini-esgotamento associado a um pequeno ataque de histerismo que resultou em gargalhadas (abafadas, não viesse a veterinária ver do que me estava a rir!...).
Lá me recompus e acabei de dar as medicações todas (as certas) enquanto a minha amiga continuava com cara de caso a ler os efeitos secundários das drogas.
- Em principio não há muita coisa de grave - disse-me ela. - No fundo demos vitaminas, estimuladores da eritropoiese [formação de glóbulos vermelhos], um antiemético e um antibiótico.
- Então não há de fazer muito mal.
- Mmmh, excepto o antibiótico, cujos efeitos secundários são vómito, diarreia, anorexia, apatia... Pode haver tremores...
Não era lá muito animador... Mas ela estava com um ar tão preocupado, que só consegui responder:
- Deixa lá, não é nada que ele já não tenha...
E era verdade. E nunca ninguém descobriu.
No dia seguinte o cão, já não estava lá quando chegámos. Chorámos a sua morte e escrevemos um
in memoriam silencioso nas nossas mentes.
Afinal tinha ido para casa. O gato, esse sim, morreu mesmo.