sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Neverending story

O drama, a tragédia, o desespero, o horror... é estudar Medicina. Apenas três temas: aparelho urinário, aparelho cardiovascular e hematologia; 26 horas de aulas, 52 horas a passar os apontamentos confusos das aulas para os slides pouco informativos fornecidos pelos docentes; 156 horas interpretando os hieróglifos das sebentas na tentativa de compreender a fisiopatologia e os mecanismos que levam à doença. É assim que se estuda Medicina. Mas não é assim que se passa no exame.

Toda a gente sabe que para passar a esta gloriosa disciplina não é preciso perceber, compreender, interiorizar, explicar, relacionar. Baseado em listas anteriormente contruídas por alunos mais velhos e acrescentadas (sempre acrescentadas) de alguma informação desinteressante mas essencial para passar, o estudo acenta em decorar as intermináveis listas.
Decorar para mim é uma tarefa difícil dada a fraca capacidade que tenho de armazernar informação. Desconfio que o meu cérebro é mais pequeno que o normal. Cheguei a esta conclusão depois de imitar uns gadalhudos roqueiros que vi a abanar o capacete. Ao fim de duas voltas com a cabeça (tal Eica Toppinen) fiquei incrivelmente tonta, confusa, baralhada e enjoada durante um período de tempo que me pareceu longo mas que não posso precisar. Como é que eles conseguem? Só tenho duas explicações: ou eles estão tão drogados que não lhes faz diferença rodar incessantemente a cabeça ou meu cérebro, por ser pequenito, chocalha contra as paredes do crâneo quando dou voltas à tola. Assim explico a imensa dificuldade que tenho em estudar Medicina: cérebro reduzido e ainda por cima essencialmente direccionado para funções abstractas e pouco práticas como a imaginação e viagens temporo-espaciais num mundo pessoal.

Como sempre, e com boa vontade, inicio o meu estudo lendo o material fornecido pelos professores. Aparelho urinário: demorado, cansativo, compreensível; o material de estudo são os slides das aulas e artigos que a professora se orgulha de ter escrito há dez anos. Nunca mais acaba de matéria e já não posso mais ouvir falar em xixi. Recuso-me a ir à casa de banho só para não pensar nos processos de filtração, excreção e reabsorção renais que me perseguem. Aparelho cardiovascular: só há slides das aulas; não tenho apontamentos porque não fui às aulas. Passo à frente - já não estou muito bem disposta e sinto um desejo crescente de cometer um crime violento. Hematologia: relembro porque desisti de ir a essas aulas. Os apontamentos podiam estar noutra língua que era igual para mim. Ainda hoje tenho dúvidas se a lista de fármacos do slide nº 7 corresponde à terapia ou se são as drogas que não devemos usar. Nesta fase o desespero instala-se e a incredulidade da situação associada a uma sensação de experiência extra-corporal leva-me a dizer coisas feias, palavrões, momentos de pura loucura com gargalhadas dementes.

Medicina. É perigoso estudar sozinho. Nunca estudar Medicina sozinho... a taxa de suicídio é assustadoramente elevada (não me atrevo a dizer) e a percentagem de alunos que são internados em asilos psiquiátricos ronda os 86.3%. Estudo numa biblioteca com as minhas companheiras nesta demanda, nesta epopeia, nesta cruzada... Não é por estarmos descabeladas na biblioteca da Faculdade de Letras que nos acanhamos de exteriorizar a nossa indignação:
- Que merd@ é esta? - grita face a um conjunto de slides idiotas sem texto, apenas bolinhas e estrelinhas. - Mas deu-lhe para a veia artística?
Tendo em conta que esta minha amiga, Susy de nome, passa à frente qualquer coisa que se assemelhe a figuras, esquemas, algoritmos e quadros, não me admirei que explodisse de raiva face aos ditos slides. Eu pessoalmente perdi tempo a pintar bolinhas de vermelho, estrelinhas de amarelo, formas não-identificadas de azul...
- Ele precisava era de uma visita aos colonócitos!
Eu e a Chiquilin rimos; sabemos que é verdade. Mas choramos... o desespero é muito... a biblioteca vai fechar daqui a duas horas e nós continuamos sem perceber o essencial da hematologia.
Deparamo-nos com duas doenças, parecidas apesar de distintas, numa sebenta com média de 5 palavras por slide. O slides, cujos títulos eram ora A.H.I.M. ora A.H.A.I., alternavam entre as duas doenças sem sequência lógica. Inicialmente pensei que os slides ímpares correspondessem a uma doença e os pares à outra; afinal não. Apliquei a sequência de Fibonacci, mas também não era essa a chave.
A Susy nem se apercebeu deste facto, o que contribuiu para que ficasse mais descabelada, vermelha, olhos cada vez mais assassinos...
- Sabes Susy... - disse timidamente - estão aí duas doenças... é por isso que pintámos os slides de uma doença de cor-de-rosa e os outros de laranja...
Ela chorou um bocadinho e depois pôs-se a pintar...
- Parece que estou na primária e não percebo nada... O problema dele é que não tem filhos!... Sucker... - deprimimos mais um bocadinho juntas. - Tentativa número 4. - recompôs-se, dando-nos um bocadinho de esperança de que o final do túnel tivesse uma abertura e que a razão pela qual não viamos nenhuma luz não era porque o túnel era interminável...

Numa tentativa de compreender os slides começamos a ler artigos escritos também pelo professor. Ficámos na dúvida se estavam escritos em português; conseguimos identificar algumas palavras mas a maioria parecia estar numa língua ainda não oficial, provavelmente apenas acessível a uma elite da qual nunca faremos parte. Desejámos ter uma estenose sub-aórtica e sofrer uma morte súbita sem sinais premonitórios.

- Pá, isto só pode ser a gozar! - dizíamos constantemente. Eu começo a desconfiar que estamos num reallity-show japonês e que as pessoas se estão a rir à força toda com o nosso sofrimento.

Lendo esta prova de verdadeira demência continuo lunáticamente convencida de que o leitor não compreende o sofrimento atroz de um estudante de Medicina Veterinária. Mas eu tenho provas: há quem fique inclusivamente com insuficiência renal crónica a estudar esta cadeira. A minha amiga Chiquilin... coitada já apresentava sinais típicos desta doença potencialmente fatal: anorexia, perda de peso, depressão, letargia, hipotermia culminando em encefalopatia.

Ao Curso de Medicina Veterinária dedico o seguinte, inpirado num grande artista do século XX:

Turn the page
And look for what you seak

In the text
The explanation of your dreams

They made believe
It's there somewhere
Hidden in the lines

Nowhere in the pages
Is the answer to this
Neverending story

A própria Susy tem um peluche do Falkor - uma premonição dos pais de que ela seria protagonista de uma História Interminável. O Falkor disse uma vez a Atreyu, o rapaz guerreiro: "Nunca desistas e a boa sorte encontrar-te-á." Quando a Susy descobriu isto destruiu brutalmente o boneco.
Esperamos pelas notas do exame...

4 comentários:

Anónimo disse...

"Ainda hoje tenho dúvidas se a lista de fármacos do slide nº 7 corresponde à terapia ou se são as drogas que não devemos usar."
Loool, podes crer! Acho que cada pessoa deve ter feito uma interpretação íntima baseada na sua história pessoal de modo a atribuir a devida classificação a essa lista! Same with me...

Anónimo disse...

xi!!!!
O que pensaria o Dr.João Semana disto tudo?
Se calhar mais vale voltar ao velho método da sangria, sanssegugas, cházinhos e rezas dos xãmas lá do sitio!
cartoon

Silver Black Dust disse...

Só para que conste lá passamos as 3 a medicina... nao sabemos é como...

Baixita disse...

Bom, sei que não nos conhecemos (mentira, que eu lembro-me bem que eras uma das minhas veteranas na grande equipa das VACAS do peddy-papper 2004), mas não posso deixar de comentar! Encontrei o teu blog por acaso e ainda não parei de ler! Tenho 2 apresentações amanha e tou para aqui a chorar a rir:)
Er só para dar os parabéns e dizer que eu também tive que ler 3 vezes a página dos slides da AHIM e AHAI para perceber que aquilo n tinha ligacao, q eram duas coisas e mais 3 ate deixar de tentar arranjar um sentido para a coisa!! LOL