quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Divagações de bairro

Eu vivo no Bairro das Colónias. Coincidentemente, ou ironicamente, é um bairro onde vivem essencialmente pessoas oriundas da China, Índia, Brasil, alguns países Africanos e, claro, não podiam faltar, velhotes. É um bairro cheio de vida, de movimento e não é preciso ir longe para conseguir qualquer coisa de que se precise:

  • molas da roupa: loja do chinês
  • cera de depilação: drogaria indiana
  • manicure: cabeleireiro brasileiro
  • internet: loja especializada do chinês (mas atenção, o teclado e o Windows estão em chinês)
  • óleo para fritar as batatas: mercearia africana

Quando passeio pelo meu bairro ouço imensas línguas diferentes. Na verdade raramente ouço português, excepto alguma velhota testemunha de Jeová que não me larga o braço enquanto eu não aceitar um livro sobre sexualidade adolescente. Sinto-me tão cosmopolita nas minhas incursões à frutaria (também gerida por chineses).


Mas mais perto de mim, há os vizinhos do meu prédio: tal como em toda a parte há os vizinhos que gostamos e os que odiamos.
Por exemplo, os meus vizinhos de baixo são uns velhotes amorosos por quem eu tenho especial carinho pois pensam sempre em mim e dão-me mensalmente um enveolpe grande cheio de piri-piri. São atenciosos e dão-me meias nos anos e Ferreo Rocher no Natal. Depois há o meu vizinho da frente, o tal gadelhudo que para minha infelicidade é gay. Vive com outros estudantes do ensino superior e juntos gostam de fritar batatas às sextas-feiras.

Mas nem todos são nossos amigos. Existe um conjunto de pessoas que varia mensalmente no R/C esquerdo - é algo mafioso. Há a vizinha do 1º direito que boicota as tentativas de modernização do prédio, faz queixas injustificadas à polícia e à Junta de Freguesia e nem sequer paga condomínio.
Mas o pior é ele... o meu delinquente vizinho de cima, com o tal amigo mal-cheiroso. Esse teenager degenerado aparentemente é o Homem da casa porque vive com a mãe e a avó. É o tipo de miúdo que grita com a avó quando o almoço não está feito e que ouve música (de muito má qualidade) aos altos berros. E claro, como um adolescente normal passa horas no messanger; ainda não descobriu, coitado, que dá para tirar o som de recepção de mensagem instantânea. E isto dura até as 2h30 da manhã, hora pela qual, provavelmente por problemas logísticos, se põe a arrastar os móveis antes de ir dormir. Isto não me incomodaria muito, não fora o facto de o meu quarto ser exactamente por baixo do dele. Talvez seja por isso que me surgem tantos pensamentos às 2h47.

Ontem esqueci-me, mais uma vez, das chaves em casa. Pus-me imediatamente a mandar mensagens à minha mãe e ao meu irmão "A que horas chegas a casa??". Só chegavam às 20h... o que significa que estava dependente de... sim... exacto... da minha avó.

A minha avó gosta muito de conversar. Provavelmente porque o seu leque de histórias é bastante reduzido e como as quer contar e nós já as ouvimos vezes sem conta desde há 20 anos para cá, tem de encontrar novos ouvintes. Isto para dizer que é óbvio que fiquei à espera dela durante 2h porque, vim a perceber depois, ela conversou com toda a gente com quem se cruzou a caminho de casa.

Enquanto esperava, sentei-me nas escadas a ler. A porta dos vizinhos da frente abre-se e sai de lá o meu vizinho gadelhudo. Ao menos uma bela visão para alegrar a minha tarde, pensei.

- Boa tarde! - disse ele. Uma pequena dúvida... será que é para mim? Atrás de mim está a parede... Sim! É para mim! (ler o sim com entoação do anúncio do Herbal Essences)
- Olá!

Ele passou por mim e começou a descer as escadas. Cheirava a côco. De repente, pára e olha para mim com ar de dúvida. Aproveito para meter conversa, claro.
- Esqueci-me das chaves!...
- Ah... - murmurou pensativamente. Recomeçou a descer as escadas; ao mesmo tempo continuou - Pois, eles estão fartos de me dizer...

Quem?... A minha mãe? O meu irmão? Não sabia de tais socializações...

- Tenho mesmo de fazer a cópia da chave, mas ainda não fiz.

A chave? Da minha casa? Por mim tudo bem... Mas devia ser uma piadeca, então ri-me. Afinal não era, porque ele ficou com cara de parvo a olhar para mim e eu recomecei a leitura, com o nariz bem enfiado no livro, demasiado perto das páginas para conseguir ler realmente o quer que seja.

Entretanto o jovem terrorista entra no prédio e grita qualquer coisa à avó como "Olha, vou ao Minipreço!". O amigo stincky ficou à porta enquanto o puto subia as escadas. Quase a chegar ao 2º andar, onde eu estava a sentar, grita para o amigo: C@brões de merd@! Não dizem boa tarde, os filhos da put@!

De repente apercebe-se da minha presença, olha para o chão e diz baixinho "Boa tarde". Ele, normalmente não me fala (o nosso ódio é mútuo) mas desta vez não podia não cumprimentar. Respondi um triunfante "Olá" com o sorriso mais genuíno que alguma vez lhe lancei. Estava a deliciar-me com esta cena. O delinquente chega a casa e depara-se com a porta fechada (realmente, quem diria...). Em vez de usar a campaínha começa a esmurrar e pontapear a porta. A própria porta, que otário...

E por tanto o balanço final do dia foi:

Gadelhudo: +1 (eu vou considerar um avanço na nossa relação platónica o facto de termos trocado palavras)
Vizinho delinquente: - 19485

4 comentários:

Madalena disse...

Outra vez??? LOLOLOLOL assim, realmente é melhor o gadelhudo ficar com uma cópia da chave! =D

Anónimo disse...

Bem, com um bairro tão prolífico em histórias, direi que nem é preciso assistir a telenovelas da TVI, pois as melhores histórias já aí estão!! Intriga, inveja, despiques entre vizinhos, romance, miscigenação cultural e racial...verdadeiros casos da vida real. Hm, só falta mesmo o gajo rico que manda em toda a gente...vá lá, em que andar é que ele mora??

Podes sempre propor o gadelhudo para porteiro do prédio, durante a próxima reunião de condóminos...pelo menos sempre ficava com acesso às cópias das chaves de todos os andares, incluindo o teu... :P

Anónimo disse...

Belíssima descrição!
Para quando o livro "O bairro da Mary"?

MFD disse...

Divinal... Divirto-me sempre a ler as vossas histórias hilariantes....